Foto 1 - A Pedra Escrita de Serrazes
Ao publicar, em 2011, o último livro a que dei o título do Blog "Na Rota das Pedras", não era intenção minha regressar ao tema das Pedras, fosse em que circunstâncias fosse. Afirmei-o, aliás, no momento da apresentação que teve lugar, em Novembro, na Guarda, convencido que estava, e estou, de que, com os três livros publicados sobre a matéria (algumas centenas de páginas), teria dado aos interessados elementos suficientes para, por conta própria, e na mesma perspectiva, se poderem aventurar na descoberta e interpretação de modelos similares que povoam "o país das pedras" que é este nosso Portugal e até, que eu saiba, uma boa parte da vizinha Espanha (Extremadura, pelo menos!).
Tem toda a razão o povo quando recomenda "nunca digas desta água não beberei, ou melhor, não voltarei a beber!". E assim foi. Um dia destes, em circunstâncias que não vem ao caso referir, quando dei conta, levado por mão amiga de alguém experimentado nestas andanças, estava posto frente ao enigma da Pedra Escrita de Serrazes protegida por um telheiro que o tempo vai abalroando mas que, em todo o caso, ajuda à referenciação do dito monólito.
Três conjuntos de (3 X 3) círculos concêntricos, com uma marca ao meio, que Leite de Vasconcelos designaria de "covinhas"; todo um emaranhado de linhas e contralinhas, definindo toda uma série de pequenos rectângulos e quadradinhos, quer em sentido vertical quer horizontal; outras linhas dispersas em sentido descendente, algumas a tocar, ou quase, a base do monólito; um buraco com alguns centímetros de fundo e com um dedo ou pouco mais de diâmetro, sobre o lado direito do monólito e a cerca de dois a três palmos da base; duas manchas irregulares, uma de cada lado, rebaixadas pela eventual queda de duas "lascas" do todo granítico...constituem, sem dúvida, um verdeiro enigma e um quebra-cabeças para quem não está de posse do código que possa levar o curioso à descodificação dos "caracteres" bem à vista, tratando-se de escrita ou não, símbolos todavia a pedir sejam interpretados...
Foi já de regresso ao alcatrão, e a alguns metros do caminho que leva à dita Pedra, que dei conta de um pequeno texto encaixilhado e protegido do sol e da chuva por um destes modernos telheiros, a cheirar a óleo e a cuprinol, a imitar sem dúvida uma certa ruralidade, que nunca existiu, com a vantagem, isso sim, de informar o turista como eu, do que os entendidos pensam ou deixam de pensar acerca do monólito e dos símbolos que ostenta na sua face anterior, plana, virada a nascente. Eis, em resumo, o que me ocorre reproduzir, acerca das interpretações da dita Pedra:
-... estilizações da figura humana;
-... representação de cerimónias fúnebres;
-... culto dos astros, com representações do sol e da lua, e outras constelações, em relação com sacrifícios ou cerimónias religiosas;
-... cronologicamente datada do século X AC, segundo o geógrafo Amorim Girão.
Com o devido respeito pelas opiniões reproduzidas, e pelos seus autores, não me parece que qualquer das interpretações emitidas possa corresponder ao verdadeiro significado da Pedra em análise. Vejamos.
No geral, e por experiência própria, as coisas são quase sempre mais simples do que à primeira vista parecem ser, embora a tendência seja de tudo situarmos no domínio do religioso e do esotérico, da morte, do oculto, do inacessível... Todavia, e quase sempre, é a história do velho "ovo de Colombo" que se repete. Só que, e para que se faça um pouco de luz, é preciso estar de posse de todos, ou pelo menos de alguns, dos elementos que fazem o contexto de modo a construir o respectivo puzzle.
Foi assim que, e já de regresso a casa, reflectindo, tentei enquadrar a Pedra em si e os vários símbolos no contexto dos meus livros já publicados, nomeadamente O País das Pedras e Na Rota das Pedras, especialmente no que respeita ao "acampamento lusitano e à simbologia das Pedras (cavalos de frisa) com destaque para o "escudo".
Ora acontece que, já em 2001, em O País das Pedras, página 166, eu escrevia a propósito do símbolo atrás referido, e no tocante à área de cavaleiros: «O escudo, dada a sua simplicidade, além de proteger o cavaleiro, poderá ter tido outro papel no terreno - o do moderno sentido proibido. Não é assim exclusivo, com a mesma forma, da área de cavaleiros. Aparece, por isso, não só entre os cavalos de frisa que ladeiam o acampamento como à entrada de quelhas ou passagens de ribeiras que delimitavam eventuais áreas territoriais autonómicas. Surge também no meio dos acampamentos, incluindo a área de peões, certamente para assinalar determinadas zonas consideradas interditas para este ou aquele efeito: iniciados, condenados, cerimónias fúnebres...".
Em face da documentação consultada, que não foi pouca, e por analogia com a interpretação dada aos vários símbolos líticos que fazem parte do acampamento lusitano, pude concluir que a sociedade lusitana, guerreira por natureza, era constituída por três grupos socio-militares: cavaleiros, vélites e peões - sendo que ainda hoje as respectivas áreas que lhes eram afectas, adentro do acampamento, se distinguem pelas diferentes formas e tamanhos dos vários cavalos de frisa que assinalam a periferia do mesmo. Para melhor compreensão do que afirmo, recomendo em especial a leitura do capítulo "O acampamento e a simbologia das Pedras", página 153, no livro "O País das Pedras" e "O acampamento militar lusitano da Cova da Raposa", página 105, do livro "Na Rota das Pedras".
É assim que, e no contexto de tudo o que ao tempo escrevi sobre as Pedras e respectiva simbologia, nomeadamente no que ao acampamento lusitano se refere, a dita Pedra Escrita de Serrazes é, em si mesma, um "escudo-geral" afeiçoado (trabalhado) na parte anterior, que é plana, e onde foram registados os "desenhos", e a parte posterior (poente) que é arredondada. Como modelos similares, dos muitos que conheço, apresento os dois que constam das Fotos 2 e 3, um sito nos Poios Brancos (Serra da Estrela) que interpretei como sendo o suporte de um dos hemisférios do cérebro humano, em relação com a prática da trepanação, e o outro (foto 3) que estava na margem direita do Ribeiro dos Aluados, em frente às Bombas da Galp (Sabugal), junto do qual, ainda no tempo do Rei D. Dinis, se fazia a cobrança de portagens por ser aí, desde 1199, o Porto de Alvasil, um dos termos do concelho da Guarda.
Foto 2 - Escudo-Geral - Representação de um dos hemisférios do cérebro humano (?)
Poios Brancos (Serra da Estrela)
Foto 3 - Escudo-Geral...na margem direita do Ribeiro dos Aluados (Sabugal)
Os três conjuntos de (3) círculos concêntricos representam, penso, os três grupos guerreiros que ocupavam o território do acampamento assinalado pelo monólito, correspondendo, em sentido descendente, e da direita para a esquerda, o primeiro ao grupo dos cavaleiros, o segundo aos vélites e o terceiro aos peões. Por analogia com os símbolos por mim analisados no Alto-Coa, o escudo, que era geral, passa assim a ser escudo triplo. Estes escudos, por regra, encontravam-se na periferia e à entrada dos acampamentos. No caso concreto deste da Pedra Escrita de Serrazes bem poderá assinalar a cabeça do acampamento correspondente ao grupo dominante dos cavaleiros já que a Pedra se situa, pareceu-me, ao nível, ou quase, da cota máxima no terreno, significando, em todo o caso, uma zona interdita ou reservada, o que é natural. Seja como for, tratar-se-á, não tenho dúvidas, de um escudo-triplo do tipo dos das Fotos 4 e 5.
Foto 4 - Escudo-Triplo... Junto à estrada velha para Sortelha
Foto 5 - Escudo-Triplo - Alto do Barrocal (Pêga - Guarda)
O escudo da Foto 4, abalroado pelas máquinas instaladoras das eólicas, estava junto da estrada velha Sabugal - Sortelha próximo do actual entroncamento para a Moita e Ribeira da Nave o qual assinalava o espaço militar afecto ao Monte S. Cornélio, a sede do Tirano da Rua, a que me tenho referido bastas vezes nas minhas publicações. O da Foto 5 está (ainda!) no alto do Barrocal, próximo do Cabeço Alto, e assinala a entrada e o começo do acampamento militar lusitano da Cova da Raposa que tratei desenvolvidamente no meu livro Na Rota das Pedras e cuja leitura atrás recomendei.
Os três escudos redondos que constam da Pedra Escrita de Serrazes estão bem em consonância com a documentação escrita e até com a arqueologia. Na verdade, Estrabão em Geografia III não pode ser mais claro: "(Os lusitanos) têm um escudo pequeno de dois pés de diâmetro, côncavo na parte da frente e suspenso com correias e levam também um punhal ou uma faca". No mesmo sentido, também Leite de Vasconcelos, em Religiões da Lusitânia, Vol II, escreve: "Estrabão demora-se a descrever-lhes (aos lusitanos) o escudo redondo e o punhal da cintura, a espada, a lança, a couraça de linho, a cota de malha e o capacete de coiro com penachos".
Quanto à arqueologia, sobretudo em Trás-os-Montes, Minho e Galiza, têm sido encontradas inúmeras estátuas de guerreiros considerados lusitanos, algumas delas decapitadas, com escudo redondo do tipo dos da Foto 6, existentes no Museu Nacional de Arqueologia.
Foto 6 - Três guerreiros lusitanos com escudo redondo - Museu Nacional de Arqueologia
Na zona a que eu pertenço, as terras do Alto-Coa, e a que eu dediquei preferencialmente os meus trabalhos, as Pedras que representam o escudo de protecção do guerreiro, nomeadamente dos peões, parecem enquadrar-se no modelo de tipo celta descrito por Jorge de Alarcão em Lições de Pré História, ao afirmar que se tratava de "escudos compridos, rectangulares e ovais e tinham um umbo (gancho) de ferro", o que faria deles arma de arremesso que não apenas de defesa.
A Foto 7 corresponde ao modelo descrito pelo autor citado e situa-se no alto do Barrocal (Pêga), na periferia do já referido acampamento militar lusitano da Cova da Raposa.
Foto 7 - Escudo guerreiro com chanfra - Alto do Barrocal (Pêga)
Os rectângulos e o quadriculado da Pedra de Serrazes podem corresponder às "esquadras" , cujo número de homens, sendo actualmente de três (infantaria), tem variado ao longo dos tempos e até em função da respectiva "arma"... Uma questão em aberto!
Se no buraco fundeiro, à direita, imaginarmos uma qualquer argola embutida, tipo chumbadoiro, a função de suporte para a haste de uma bandeira ou estandarte representativo do acampamento (os signa militaria) não me parece descabida. Até o topónimo, bem próximo do local, "Quinta do Pendão", poderá ter a ver...
Quanto à cronologia, a pedra suporte é de granito puro, de grão fino, creio. Penso que este tipo de rocha não será facilmente trabalhada por um outro material anterior ao domínio da técnica do ferro. A ser assim, o monólito pertencerá à época do ferro, nunca anterior, portanto, ao século VIII AC.